sábado, 30 de outubro de 2010

O DIREITO À SEGURANÇA E JUSTIÇA

Por Sérgio Luiz Lacerda
Professor de Negociação, Mediação e Arbitragem
Curso de Direito da Faculdade Internacional de Curitiba
Presidente do IBN – Instituto Brasileiro de Negociação
Membro do Conselho de Ética e Disciplina do CONSEG-Boqueirão 

            Deveria recair sempre a pergunta, ao se aplicar segurança está-se indubitavelmente praticando justiça? Esta é uma indagação que permeia, na verdade, juristas e cidadãos. A resposta sempre é muito ampla, muitas vezes imprecisa e, em certos aspectos, até vagas.
            A maioria das teorias políticas, que explicam a origem e justificam a existência do Estado, procuram orientar que o principal foco deste é garantir uma coexistência pacífica entre os indivíduos, cerceando os conflitos e punindo os malfeitores. A própria Constituição Federal em seu art. 144 caput, adita a norma que “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis e polícias militares e corpos de bombeiros militares.”
            Nota-se que chama a atenção à redação do referido artigo, o fato dela ser direito e responsabilidade de todos. A reflexão recai na compreensão que preservar a segurança pública não deve ser exclusividade do Estado. Os cidadãos, as organizações e às comunidades são parte integrante desse processo político. Uma sociedade torna-se autônoma e madura quando percebe que a cidadania é consequência da crescente participação de seus concidadãos na construção de valores éticos e morais, associados a crenças e costumes que os conduzam permanentemente em direção a paz social.
            Não se está aqui indicando ou afirmando que a autotutela deve ser pretendida pelo cidadão brasileiro, como meio de buscar e justificar a segurança pessoal e por extensão a pública, pois, seria um grande retrocesso. Cabe, contudo chamar a atenção para a responsabilidade da coexistência, da coabitação de espaços entre este e os órgãos de segurança e justiça, condição essencial para que exista liberdade e democracia.
            Inquestionavelmente esta é a evolução do sentido e prática da segurança e, principalmente, de justiça no Brasil. Entretanto é necessário reconhecer que se deve ultrapassar a retórica e, verdadeiramente, instituir-se um modelo de justiça cidadã que reconheça em cada pessoa humana a co-responsabilidade na construção permanente da paz social.
            Entende-se que isso somente será possível quando, de fato, o Brasil amadurecer em um modelo de justiça que o conduza ao estado amplo e irrestrito de cidadania. O referido obstáculo, conforme nos ensina Larry J. Sigel em “Criminologia: teorias, padrões e tipologias”, as modernas sociedades se deparam com quatro pré-requisitos que as direcionam para a criminologia, fazendo-as com que percam sua capacidade de defesa. Primeiramente a ordem social da moderna sociedade industrializada que não tem por base o consenso, mas a dissensão. O conflito que não expressa uma realidade patológica, senão a própria estrutura e dinâmica da mudança social, sendo funcional quando contribui para uma alteração social positiva. O Direito que representa os valores e interesses das classes ou setores sociais dominantes, não os gerais da sociedade, aplicando à justiça penal as leis de acordo com esses referidos interesses. Por fim, o comportamento delitivo como uma reação à desigual e injusta distribuição de poder e riqueza na sociedade.
Perante tal entendimento, não seria descabida a sociedade pós-moderna ainda permitir-se a aplicação do modelo de justiça retributiva, ou seja, a sansão é a pena a ser aplicada. O infrator é enxergado como alguém que não “presta”, que cometeu uma infração – intencionalidade – e que por conta disso, deverá ser punido na proporção de seu crime. A vítima, por seu lado, pede que a justiça o puna, para que seja beneficiada. A comunidade, frente à gravidade do crime, busca pela intimidação, como único meio viável de obrigar o infrator a entender que seu ato é inadmissível e que para tanto, necessita ter sua conduta controlada.
Em decorrência, não seria inoportuno as polícias ainda reterem sobre seus métodos de contenção dos desvios sociais, a abruptalidade na manutenção da truculência, comportamento repulsivo que os distanciam ainda mais da comunidade, quando obrigatoriamente tem que ser o inverso. A dicotomia reativa da sociedade, enquanto comunidade é a descrença seguida de aumento na infalibilidade policial, como corporação e representante direto da presença do Estado junto às deformações sociais.
Ainda que alguns segmentos da sociedade e do próprio Estado entendam que seja necessário em certos aspectos da criminologia, aplicarem-se sansões sob a forma de tratamentos específicos, enxergando-se, muitas vezes, o infrator como pessoa doente, problemática e que diante desse diagnóstico, está incapacitado de cuidar de si mesmo. Que não tendo total culpa por seus atos, caberá à comunidade responsabilizar-se por sua recuperação, devendo ficar o mesmo nas mãos de especialistas, os únicos capazes de reabilitá-lo. Assim mesmo, a partir de um modelo já mais democrático, porém perpetuando compromissos com ranços de uma ditadura de valores, valendo-se do modelo de justiça distributiva, transfere-se da comunidade para o infrator e para a justiça a preocupação sobre suas necessidades e encaminhamentos sociais. Assim a comunidade se tranquiliza, porque não necessita nem opinar tampouco participar sobre as decisões que serão tomadas sobre a pessoa do infrator. É possível antever-se que tais procedimentos carregam enormes possibilidades de se perpetuar mecanismos de corrupção no combate à violência, indicando sensíveis desencontros quanto à manutenção da segurança pública e aplicação da justiça.
Em ambos os modelos é patente que a comunidade atua indiretamente sobre a criminologia, influindo sobre seu efeito, não sobre sua causa. É imperiosa a mudança de conduta social sobre o sentido de segurança pública e de justiça. Não se pode combater violência e tráfico de drogas, por exemplo, pelas bordas do problema. Urge transformação cultural que só será possível quando o sentido de coletividade estiver amplamente incorporado junto aos integrantes da comunidade. Os Conselhos Comunitários de Segurança - CONSEGS serão rigorosamente convalidados na medida em que desencadearem ações nessa direção.
Consequentemente os efeitos de uma justiça cidadã serão realocados pelos CONSEGS às comunidades na proporção em que seja incorporado o modelo de justiça restaurativa, ou seja, o infrator assumirá compromissos sobre seus atos porque a ele será imputada a responsabilidade direita sobre os efeitos da recuperação. O delito praticado por ele, porque teve causas e conseqüências, o conduzirá a assumir conscientemente os prejuízos. Esta será sua pena: o compromisso. A vítima pretende que o compromisso o conduza para o entendimento de seu ato. Neste caso passa a compartilhar na construção e aplicação do compromisso pelo infrator à sociedade, para que de fato seja capaz de entender a extensão do dado causado e a obrigatoriedade de repará-lo. Assim, deverá a comunidade contribuir plenamente para que as partes assumam e cumpram o compromisso.
Por causa desse entendimento maior o Conselho Comunitário de Segurança do Bairro Boqueirão manterá permanentemente seu lema “Participação de todos em prol da Inclusão Social e Ambiental”.

Um comentário:

  1. Prof. Sérgio
    Seu texto, primoroso pelas explicações e chamamento da comunidade, deixa clara a necessidade do envolvimento de todos pela obtenção e manutenção da segurança e da justiça, enquanto direito/dever de todos os cidadãos. No entanto, sabemos que a comunidade só estará atenta a esse dever, quando tiver uma representação que realmente ateste os seus direitos, quando o seu filho puder caminhar em segurança, quando os governantes também aderirem a essa causa. Tem toda razão quando diz que se busca consertar os efeitos e não trabalhar na causa. Infelizmente, apesar de todas as tentativas das comunidades, estamos longe de uma justiça e segurança solidárias, por motivos inúmeros, dentre eles a política, que é o maior exemplo de marginalidade. Tomara os CONSEGs sobrevivam como instituições comunitárias e sejam fortalecidos pela participação de toda a população em busca de dias tranquilos, principalmente para as nossas crianças e adolescentes que precisam de escola, trabalho e lazer, pois querem apenas o direito de viverem em paz, sem o traficante a sufocar-lhes a infância e a juventude. Qualquer tentativa de estabelecimento da paz (segurança e justiça) deve estar atenta a isso e, só a partir de medidas nesse sentido, o trabalho será eficaz. Continue a esclarecer-nos sobre os temas polêmicos. É um prazer como leitura.

    ResponderExcluir